29 de março de 2011

Natureza e peregrinação

O padre José Antunes da Silva é missionário do Verbo Divino, um apaixonado pelas peregrinações e profundo conhecedor do Caminho de Santiago. Começou com um grupo de universitários a caminhar para se distanciar dos ruídos da cidade e nunca mais parou…

Em entrevista à Agência ECCLESIA dá a perceber o encantamento de caminhar entre a Natureza e de como este tempo quaresmal também pode ser uma peregrinação com subidas e descidas, pontes e riachos, sol ou chuva…


Agência ECCLESIA – Fazer uma peregrinação nasceu de algum sonho? E porque é que a primeira foi a Santiago de Compostela?

José Antunes Silva – Eu sempre gostei de andar a pé no meio da Natureza… e Santiago dada a proximidade e o local que é, como um centro que ao longo dos séculos atraiu peregrinos de todo o Mundo pela a existência do túmulo do apóstolo Tiago. Além disso a distância permitiu que fossem peregrinações com um número razoável de dias que permitiam entrar num ritmo mais calmo, de contacto com a natureza que é muito libertador para quem vive o ano todo no meio do trabalho, do stress e do ruído da cidade.

AE – O peregrino tem sempre em vista uma meta. Pode-se dizer que essa meta é o encontro com Deus?

JAS – A peregrinação tem sempre uma meta… Se é esse encontro, já não sei responder ao certo… O que posso dizer é que através da peregrinação, das etapas que fazem, podemos encontrar Deus de alguma forma… esse encontro faz-se ao longo do caminho, vai-se descobrindo porque não se dá num único momento. Deus vai-se revelando no próprio caminho, etapa a etapa.

AE – A Natureza é a maior companhia numa peregrinação, nomeadamente no caminho de Santiago são variados os elementos que se apresentam: bosque, pontes, regatos… Que significado tem toda esta envolvente?

JAS – Quem anda a pé muitos dias atravessa paisagens diferentes e o contacto com a natureza pode ser uma extraordinária experiência espiritual no sentido de nos sentirmos um todo. Como dizemos num salmo “Deus criou o Mundo e tudo o que nele contém” portanto toda a criação é obra de Deus… Eu costumava pensar assim: estes montes, estas florestas, estes riachos estão aqui desde o início do Mundo para mim, para eu contemplar, para eu cruzar… Toda a beleza que Deus criou no universo está ali na actualidade para mim, mas é necessário eu abrir os olhos, o coração e a minha vida para observar, só assim me consigo sentir criatura de Deus.

AE – Referia que uma peregrinação é uma rica experiência espiritual. Cada vez que o faz é sempre um novo convite à oração e contemplação?

JAS – Sim… Eu gostava de fazer uma distinção: mais do que fazer coisas religiosas ou espirituais numa peregrinação é importante viver a espiritualidade de peregrinar, porque eu não preciso de ir em peregrinação para rezar! Agora viver um caminho, as várias etapas, durante dias, isso só mesmo colocando pés ao caminho. Etapa por etapa, sem querer chegar à meta no primeiro dia, fazendo sempre o processo e durante esse tempo perceber as forças, as fragilidades e pelo caminho conhecer outras pessoas, saber acolhê-las e confrontar ideias e ideais. Muitas vezes mesmo repensar a nossa fé, as nossas razões de acreditar com essas pessoas, também peregrinos e o contacto com a natureza é que nos leva à proximidade com o divino.

AE – No meio da natureza, em peregrinação, o que costuma pensar ou rezar?

JAS – No silêncio… Caminhando muito tempo, muitos dias, através de paisagens praticamente desertas muitas delas, onde só o silêncio habita, isso também vai entrando em nós. Uma das coisas que mais estimo neste ambiente de peregrinação é a terapia do silêncio, porque estamos cheios de ruídos dentro de nós e uma caminhada longa é terapia. Não é preciso muitas palavras, nem muitas orações, porque se conseguirmos fazer silêncio dentro de nós, então iremos ouvir muitas coisas: a nossa consciência, o nosso coração e especialmente os mais variados sons da natureza. E depois a voz de Deus.

Silêncio poderia ser a melhor palavra para eu definir a peregrinação, o atravessar os campos, as montanhas, os bosques.


AE – Aqueles que vivem na cidade têm falta de proximidade com a Natureza e por isso se encantam tanto numa peregrinação?

JAS – Sim, acho que há uma espécie de saudade de pertencermos à terra e quem vive nas grandes cidades, no meio do ruído e com pouca possibilidade de acompanhar o ciclo das estações do ano e tem necessidade de sair, nem que seja numa breve caminhada de 5 ou 6 dias. Torna-se num deslumbramento que as árvores têm folhas e que depois as perdem para dar flores e frutos, chega a dar-nos uma nova visão da vida, porque este processo é lento e nós queremos tudo rapidamente.

Nesta altura, por exemplo, fora da cidade temos a oportunidade de assistir ao nascimento da Primavera que está agora a explodir em cores, em flores e folhas e numa peregrinação a pé permite sentirmos a cumplicidade de pisar a terra, passo a passo, de sentirmos o vento ou de nos molharmos com a chuva… experiências que nos ajudam a perceber o nosso lugar no Universo e o papel do Criador.


AE –Este tempo de Quaresma também pode ser definido como uma peregrinação?

JAS – Sim, a Quaresma é uma peregrinação, são 40 dias. Eu costumo mesmo dizer que é uma peregrinação das cinzas à luz e também exige de nós vencer etapa após etapa, não se pode chegar à Páscoa no dia a seguir a quarta-feira de cinzas. É preciso haver um processo de crescimento que envolve algum sacrifício, alguma austeridade, que envolve o jejum, a oração… Toda uma série de etapas que nos vão ajudar a transformar a cinza, que simboliza a nossa fragilidade, o nosso pecado, em luz, a luz Pascal que é o próprio Cristo. Quarenta dias até lá é mesmo uma caminhada, não é física mas também pode envolver alguma peregrinação neste tempo. A própria quaresma é um caminho espiritual que exige dedicação e empenho para que haja também alguma mudança.

AE - Comparando com as peregrinações por que tipo de natureza temos de passar para ir das cinzas até à luz?

JAS – Primeiro é preciso o discernimento, o essencial do supérfluo. Para peregrinar a primeira coisa é fazer a mochila e esse acto é de discernir o que levar e o que deixar em casa. É talvez nesta caminhada quaresmal uma primeira atitude a ter, ficando com essencial, a palavra de deus e o amor ao próximo, na esmola, oração e jejum aliados no amor a Deus e ao próximo.

Depois a persistência, se eu quero atingir uma meta eu não posso desistir ao primeiro fracasso nem saltar etapas. Este passo também é importante numa caminhada quaresmal porque pela constância também conseguimos dar espaço a Deus.

Como pontes ou riachos… como momentos de beleza na quaresma temos o perdão, dar e receber o perdão podem ser momentos de extrema beleza na nossa vida espiritual. Outro é a caridade e solidariedade, traduzida na esmola em linguagem antiga, o ser capaz de amar o outro, de o ajudar sem esperar nada em troca. Isto também se pode aprender numa peregrinação, a ajuda que se dá ao outro, que é peregrino como eu, só pelo facto de ajudar. Um apoio, um abrigo, um pão ou uma simples conversa são gestos que se fazem sem esperar nada em troca, são momentos de grande beleza.

AE – Antes de começar uma peregrinação decerto que dá algumas palavras. O que nos diria antes desta caminhada quaresmal?

JAS – A importância do silêncio interior, o olhar para quem vive connosco e à nossa volta não podem ser esquecidos. É através deles, dos outros, que podemos chegar ao coração de Deus.
 
Agência ecclesia
 
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